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    Retomada em espiral

    As tecnologias imaginativas dos povos afrodiaspóricos e indígenas nos ensinam que sentir o tempo como uma espiral ao invés de pensá-lo sempre linear e adiante é uma forma de olhar para nossa história como algo que se repete incessantemente, mas nunca sem mudanças. Nas encruzilhadas do tempo, é possível encontrar Pixinguinha em Emicida, Joni Mitchell em Klüber, Cascatinha e Inhana em Marília Mendonça, perceber que nada se perdeu e, apesar de grandes mudanças, nem tudo se transformou. Essa tessitura que nos conecta musicalmente na história perpassa o trabalho de qualquer pessoa que venha a cantar, tocar um instrumento, organizar um show ou qualquer outro esforço para fazer soar a música, pois ela é feita de ancestralidade viva e contínua. Sendo assim, quando falamos de retomada, o que retomamos exatamente?

    Qualquer pessoa que trabalhe com música tem uma narrativa de frustração decorrente da pandemia de Covid-19. No meu caso, foram oito shows em diferentes cidades do Estado de São Paulo que caíram por terra. Edital aprovado, criação cênica, figurino, cenografia, produção, tudo inviabilizado de uma hora para a outra. Quem não tomou um tombo assim talvez não pisasse no chão deste planeta e já que é pra tombar, tombamos todes: artistas iniciantes em recuo, carreiras sólidas se tornando incertas, discos recém lançados que não viraram show, profissionais do mainstream reformulando subitamente todas as formas de trabalhar. Mergulhamos em novas maneiras de nos relacionar, de fazer nossas canções chegarem aos ouvidos e de materializar um mar de ideias dentro de telas de celular, computadores e televisões. Não foi fácil, não tem sido, mas o tempo é generoso também e, assim como poda, faz brotar. Em sua espiral contínua, ele nos apresentou possibilidades inéditas e criamos formas de cantar nunca dantes navegadas. Por aqui, a turnê do meu álbum de estreia, OGÓ, tornou-se um álbum visual em quatro atos e nessa empreitada encontrei parcerias essenciais no mundo digital que, aos poucos, transcendem as telas e seguem firmes em novos abraços presenciais.

    Pois então retomemos como quem tem no constante reinício o combustível para criar. A música é muito e não deixa de soar. Por meio dela nós nos mantemos vivazes diante de tanta morte ao redor e ao seu som também nos deixamos desabar às vezes, pois mais do que demonstrar força é essencial investigar o que está vulnerável para compreender o tamanho dos passos dados na caminhada. A música é amiga do tempo, só pode soar enquanto ele corre e, conforme o mundo se repete e se transforma, nossos corpos se movem, cantam, tocam, vibram e reafirmam sua indispensável presença na espiral dos dias que vêm.