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    A delicada equação que rege a vida

    Como Klüber, cantore, compositore e pianista curitibane de 24 anos, elabora sua arte e vida

    Inquieta, curiosa, sarcástica, estridente e inteligente. Assim é a música de Joã, ou melhor, Klüber, artista não binárie de Curitiba. Prestes a lançar o seu disco de estreia, Klüber traz na voz delicada, palavras assertivas de quem muito se contorceu para caber na moldura dos espelhos conservadores e só saiu dali quando mergulhou no reflexo profundo dentro de si. Aos 24 anos – 17 deles dedicados à música – Klüber não é exatamente estreante, mas tem o frescor e a curiosidade de quem ainda tem muito a oferecer, seja pelas camadas sonoras de suas propostas ou por suas palavras.

    Em nossa conversa, Klüber desviou de tosses e espirros de uma insistente crise de rinite que acompanhava seus áudios tarde da noite. E mesmo em meio a condições pouco agradáveis me surpreendeu com seus pensamentos lineares, organizados e curiosamente dialéticos a respeito de tudo. Num fluxo de pensamentos que valoriza os vaivéns da mente, e que, sobretudo, aceita e inclui questões transversais à conversa, a dialética traz densidade e contraponto a qualquer assunto. Ficou complicado demais? Calma, você vai entender. 

    Quando perguntei o que esperar do meio musical no mundo pós-pandemia e o que poderia continuar como aprendizado deste período, Klüber deu uma resposta bastante lúcida. “Eu acho que falar em um novo normal é tão reducionista quanto ingênuo, mas a ideia do normal de antes também é muito complexa… Por que o que é voltar à vida normal? É continuar abrindo cratera na Terra, tirando todos os minérios, explorando até não ter mais atmosfera? Não sei. Acho que quem pra tá atenta, não tem como voltar ao que era antes. A gente vai conviver com o vírus SARS-Cov por muito tempo ainda, até o fim da humanidade talvez. E o que virá depois? Nesse sentido, não consigo não ser pragmática. Acho que existem limites que o Homo Sapiens pode fazer na Terra e sair ileso”, refletiu. 

    Mas, no mundo prático que cerca suas notas e arranjos, Klüber concorda com muitos profissionais do circuito cultural: os avanços tecnológicos estabeleceram novas pontes e possibilitaram que formatos híbridos se popularizassem. Shows em formato presencial com transmissões ao vivo e vendas de ingressos, por exemplo, fizeram a música chegar ainda mais longe, ajudando muitos artistas independentes. “A cena autoral e musical no Brasil é bastante rica, mas eu acho que muitas das coisas mais interessantes acabam não chegando ao conhecimento de mais pessoas. Não consigo não pensar que o sul do Brasil é extremamente embranquecido, extremamente racista. A gente tem essa questão aqui no sul, esse separatismo esdrúxulo, e isso reflete nas artes e nas coisas que as pessoas consomem”, comenta. No entanto, elu acredita que apesar desse cenário, muitos coletivos, festivais e artistas contribuem para movimentar a cena regional em sentido contrário, mais múltiplo e acolhedor, mesmo sem o devido reconhecimento.

    Com belíssimos olhos azuis esverdeados e uma cabeleira ruiva de fazer inveja, Klüber é uma pessoa de pensamento sofisticado e hábitos comuns. Impossível não se identificar. Gosta de “tirar umas piras na cozinha” e testar temperos e ingredientes diferentes. Enquanto finaliza leituras como “Ideias para adiar o fim do mundo” de Ailton Krenak e “Homens Imprudentemente Poéticos”, do escritor Valter Hugo Mãe, divide seu tempo livre entre apps de relacionamento alternativos, shows e performances ao vivo no Youtube.

    Vida & Obra. Lançado em maio de 2019, o clipe de “Detox” está entre seus maiores sucessos. Com uma letra que brinca com as suas próprias contradições, Klüber conseguiu se comunicar com um número muito maior de pessoas. Gente que, assim como elu, enfrenta dúvidas sobre o futuro do país e o impacto das micro ações e decisões do dia a dia. Numa banheira em meio ao mato e usando máscaras de oxigênio, Klüber parece antecipar um cuidado necessário anos depois – a máscara, a reflexão e a reclusão. 

    Já em “Cante Comigo este Refrão Clichê de Pop Farofa”, uma canção só voz e piano, com uma destreza sonora espantosa, Klüber leva sua reflexão a outros lugares. Falando sobre os ideais irreais de amor romântico, usa construções complexas que, ao mesmo tempo que fazem pensar, impregnam a memória sonora. “Fale-me de ti, como anda/ numa compreensão figurada/ o seu coração/ Tem este cuidado/ o amor é invenção da burguesia/ e a gente sofre por ele/ todo dia”. E, mesmo com ironia e sarcasmo, Klüber não escapa ao desejo de contato. Entoa palavras que, após um ano e meio de pandemia, ainda ressoam alto no refrão de balada bob dylaniana, “quero poder dizer que estamos bem, quero poder te abraçar, certo de que tudo vai melhorar”.

    Com uma formação clássica, Joã se apaixonou pela música ainda cedo. Aos 7 anos ganhou o seu primeiro teclado, presente da tia para elu e sua irmã gêmea, e nunca mais parou de tocar. Lembra de passar horas a fio ouvindo música e explorando os sons do teclado, imergindo num mundo novo. 

    Foto: Arquivo pessoal

    Klüber conta ainda que, quando estava no ensino fundamental, foi influenciade pelos estudos de sua mãe e, por meio de seus livros conheceu a Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade. Ao mesmo tempo que se perdia entre versos e poesia, se deixou levar pelas ondas sonoras do rádio, misturando Radiohead, Beyoncé, Lady Gagae música sertaneja. Mas, mesmo com as incursões digitais em busca de novos sons que lhe apresentaram a cantora e pianista Regina Spektor, nunca abandonou a música de concerto, tendo como referências Beethoven, Chopin e Bach. 

    Todas essas referências ainda estão presentes em seu trabalho e, Klüber adianta que estarão ainda mais sólidas no seu primeiro álbum, previsto para 2022, ainda sem nome. 

    No início deste ano, a artista lançou um financiamento coletivo para o seu projeto e, após alguns meses de campanha, conseguiu arrecadar o recurso necessário para gravar, mixar, masterizar e remunerar todas as pessoas envolvidas na realização. 

    Catarse. Se, Joã aos 13 ou 14 anos imaginasse que seu desejo de se expressar levaria ao surgimento de Klüber, não podemos saber. Mas, certamente, aquela criança se sentiria mais representada pela voz e pelo som que encontraria hoje nas plataformas digitais. Afinal, as músicas de Klüber não são apenas sobre a situação social e política do país, ou sobre os ideais pouco realizáveis de amor e felicidade. São também sobre encontro e reconhecimento.

    Em “Apostasia”, uma emocionante canção ao piano, Klüber fala sobre solidão, identidade e incertezas da autoimagem que corpos dissidentes como o delu enfrentam. Isto porque, além da falta de referências, pessoas da comunidade LGBTQIA+ enfrentam o preconceito e o julgamento da sociedade. Esse retraimento e solidão, tão marcantes em nossas vivências, estão perfeitamente delineadas no refrão “Me diz/ o que que é o teu maior problema comigo?/ Me diz/ o que que é o meu maior problema contigo?/ Quero ver adivinhar”, ecoando na sala vazia do clipe. Não à toa a canção se chama Apostasia, que significa, entre outras coisas, a negação de uma crença. Uma música de levar às lágrimas quem sabe do que se trata esse tipo de rejeição. 

    Klüber, diz se sentir muito pronta para refletir sobre suas relações e vínculos e, por isso mesmo, escolheu trazer suas reflexões sobre gênero e sexualidade à tona para o público. “Sendo uma pessoa que canta, compõe e toca as próprias canções, meu corpo é um corpo que carrega todas as minhas experiências e a minha voz carrega este corpo junto. Eu não tenho como me desligar ou manter isso como uma questão privada ou dúvida, não me interessa essa dúvida. Me interessa a dúvida como artifício para questionar a cisgeneridade. Mas não me interessa que as pessoas não entendam o meu lugar, não entendam que eu não sou uma pessoa cisgênero, que eu não sou uma pessoa heterossexual. E que sendo não binária, essas dimensões de hetero e homo não fazem sentido para mim”, comenta. 

    Além de trazer suas questões pessoais para o jogo de cena, Klüber reafirma como a representatividade segue sendo importante para a comunidade. “É importante pensar como realmente faz diferença a gente ter referências, crescer vendo que uma pessoa existe, que ela pode viver, ocupar espaços e pensar que eu esteja abrindo algum tipo de caminho, por menor que seja, me fortalece para seguir dizendo quem sou”.

    “Na pandemia, eu vivi um processo de auto análise bem específico com relação ao meu gênero, com acompanhamento psicológico e tudo, então me pego pensando como é difícil, agora nessa abertura gradativa da vida, entender a complexidade que é falar sobre gênero, que é ser uma pessoa não cis tocando instrumentos em público. Eu realmente estou num lugar bem específico quanto a isso agora. Penso que às vezes eu preciso negociar com esses espaços e, às vezes, violentar essas estruturas”, reflete.

    Em seu próximo trabalho, Klüber oferece para o público, algumas de suas “piras” sonoras. Com produção da multi-instrumentista Érica Silva, produtra, arranjadora, compositora e integrante da banda MULAMBA. O álbum traz instrumentos orgânicos como violão e guitarra, além da voz e piano, numa mistura inédita de folk, rock, grunge, música experimental e pop farofa que embala temas sociais, relacionamentos afetivos e, claro, acidez e bom humor.

    Quem estiver de ouvidos e olhos abertos para absorver o que esta artista tem a dizer, vai perceber que Klüber se entrega à vida e às reflexões que nascem a partir dela. E com elu, se deixar levar por músicas que ultrapassam uma comunidade específica. São músicas que partem daí para refletir sobre as relações humanas, os afetos e os passos sobre a Terra. Em suas músicas Klüber equaciona a doçura e a estranheza que regem a vida.