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    Quem tem medo da retomada?

    Como o setor musical vem lidando com a volta crescente de eventos presenciais a partir do que viveram nestes quase dois anos sem shows

    “Qual foi seu último show antes do mundo acabar?” Se você é do rolê da música, seja enquanto profissional, seja enquanto público, essa pergunta invariavelmente já te sapecou pela boca ou ouvidos de Março de 2020 até aqui. Com a chegada da pandemia da Covid-19 no Brasil, a saudade de ver um show foi apenas um dos muitos efeitos colaterais que a quarentena provocou sobre o setor musical. 

    E, talvez, o mais sutil, já que a vontade de curtir uma música ao vivo não era quase nada perto da crise social e econômica que se instaurou nas cenas independentes, midstream e mainstream Brasil afora. Apresentações sendo canceladas, casas de shows fechando e, nisso tudo, diversos trabalhadores da música perderam suas principais fontes de renda, tendo de recorrer a auxílios governamentais para seguir com as contas em dia e a comida na mesa. 

    Segundo levantamento publicado pelo Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural – com base em dados da Pnad, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios -, entre dezembro de 2019 e junho de 2020, cerca de 870 mil trabalhadores do setor cultural, informais e formais, perderam seus empregos no Brasil. De 7,1 milhões em dezembro de 2019, a pesquisa chegou ao número de 6,2 milhões em junho do ano passado, praticamente uma redução de 12,2% de pessoas trabalhando na cultura – incluindo o mercado musical.


    Correndo em paralelo a essa situação nos bastidores, a vacinação no Brasil também implicou algumas questões na retomada do setor de eventos. Com a demora na compra e aplicação das vacinas em âmbito federal, além da falta de uma articulação nacional mais ampla e eficiente em relação aos métodos de prevenção e contágio do coronavírus, a música brasileira entrou em suspensão. Se para os artistas as “lives” foram uma das principais alternativas de seguir com algum tipo de movimentação, alguns festivais também não tiveram outras possibilidades e migraram para o ambiente online.

    Um deles foi o Festival Carambola, de Maceió (AL), que durante os dois últimos anos deu as caras no virtual em três oportunidades diferentes. O primeiro rolou em Abril de 2020, numa “live” coletiva com mais sete festivais nacionais. Meses depois o Carambola fez sua primeira edição online sozinho e em Setembro de 2021 executou a segunda edição, mesclando apresentações musicais em formato de session, bate papo com artistas e uma pré-estreia cinematográfica. 


    “Este primeiro evento, em 2020, nos deu a possibilidade de manter nosso nome em circulação, de ajudar a cadeia produtiva da música com valores doados pela patrocinadora e pelo público, que assistiu ao evento e nos fez aprender bastante sobre a realização de eventos online”, explica Lili Buarque, produtora cultural do núcleo idealizador do Festival Carambola. “Realizar um evento digital parece simples, mas para nós foi uma grande novidade. A partir do novo formato, buscamos parceiros e marcas que se identificavam com o evento nessa versão virtual e foi isso que sustentou, literalmente, o Carambola de pé nesses quase dois anos. Esquecemos qualquer possibilidade de lucro – já que não existe venda de ingressos e nem bar em eventos digitais -, mas ficamos bem felizes de continuar ativas apesar de tudo”. 

    Para o ano que vem Lili espera voltar com a edição presencial do evento, acompanhando para isso cada novo movimento da pandemia no Brasil. “Estamos a todo vapor no planejamento da 6ª edição do Festival Carambola em formato físico. Obviamente que estamos atentas às determinações governamentais de liberação de eventos e aos cuidados sanitários que são ainda necessários, mas se tudo der certo, estaremos juntos em Abril de 2022”, aponta Lili.

    E para os artistas, como fica tudo isso? A cantora paraense Liège, que lançou seu primeiro álbum, Ecdise (Natura Musical), no meio de 2021, sente que a pandemia exercitou nela um processo de desapego. “Eu já estava vivendo novas realidades, querendo falar sobre novas coisas e o disco poderia perder a relação com o agora, sabe? Senti que seria melhor lançá-lo em 2021, ir trabalhando com ele no online e abrir espaço emocional até, para deixar fluir uma energia que atraísse novas oportunidades”, explica a cantora, que manteve as contas em dia com a ajuda de trabalhos paralelos em direção de arte e ações publicitárias, uma vez que somente com a música não foi possível segurar a onda. 

    Para sua retomada pessoal, Liège já está em processo de ensaios, montagem de direção artística e criativa do show e desenhando uma possível turnê de Ecdise para 2022. “Estou muito animada com tudo isso. Para rever, olhar, falar ‘Que saudades! Que bom que tu viestes ver meu show!’, esse tipo de coisa… Tenho visto que as casas de shows estão adotando posturas legais, até mesmo com uma extensão virtual dessas apresentações, para quem não pode ir – ou não se sente seguro ainda -, acho que isso pode ser algo muito bom também, pensando que a vacinação ainda não está completa e o vírus ainda continua por aqui”, reflete Liège.

    “Estou muito animada com tudo isso. para rever, olhar, falar ‘Que saudade! que bom que tu viestes ver meu show!’ esse tipo de coisa…” – Liège

    No entanto, para quem já está no processo de retomada, as perspectivas diferem um pouco. O músico e produtor musical Sandro Silveira, mais conhecido como SANDRO, de Gravataí (RS), compartilha suas primeiras impressões sobre o retorno de eventos musicais neste finzinho de 2021. Artista e ao mesmo tempo “graxa” – apelido carinhoso para quem integra as equipes técnicas -, SANDRO revela alguns de seus principais anseios, sem abrir mão, claro, das suas expectativas mais otimistas.

    Foto: Renan Queiroz

    “Vejo tudo isso com bastante dúvidas ainda. A pandemia mudou tudo na minha vida, enquanto artista e também em relação aos meus trabalhos de backstage. Estou trabalhando com outras coisas hoje em dia. Foi um momento muito ingrato para nossa profissão, olho com desconfiança até por conta da pandemia em si, de não saber se mais pra frente tudo não voltará a fechar, e coisa e tal”, sinaliza SANDRO. Para ele, a retomada está coberta por uma sede de shows, tanto do público, quanto dos profissionais de bastidores. “Neste instante estou entendendo o fluxo dessa retomada, já comecei a receber alguns convites que estou remanejando em paralelo com as  minhas outras atividades aqui em Gravataí. Acho que tem tudo pra dar certo sim, o pessoal se vacinando, tomando os cuidados, usando máscaras. E assim, a gente precisa sair, né? Estamos cansados e agora, com a vacinação acontecendo, chegamos nesta hora em que é possível dar os primeiros e pequenos passos. Acho que os medos vão enfraquecendo aos poucos e vamos nos adaptando a tudo isso também”, projeta o músico gaúcho.

    Num misto de falta de respostas e um cauteloso otimismo, a cena musical brasileira vai se readequando aos novos tempos, praticando novos protocolos e buscando saídas alternativas dentro das possibilidades de cada local. Casas, artistas e produtores vão testando pra ver se dá pé o tempo todo, compreendendo que neste período não existe fórmula pronta, mas sim um entendimento coletivo: é preciso que cada um se cuide no individual para que o coletivo possa usufruir de um bem estar cada vez maior e duradouro.